Isabela Para Poty

Quem inventou o concreto,

nunca andou descalço.

Quem inventou os postes de luz,

nunca namorou no escuro.

Quem inventou a arma,

nunca sentiu a fé.

Quem inventou o guarda-chuva,

nunca sentiu a chuva das árvores que caem com o vento.

Quem inventou os carros,

nunca andou pelos caminhos sagrados.

Quem inventou as paredes,

sempre viveu em barreiras.

Quem inventou o relógio,

nunca refletiu.

Quem inventou empacotados,

nunca comeu só o que vem da terra.

Quem inventou remédio,

nunca sentiu cura.

 

É preciso ter paciência para desfazer nós.

 

***

 

Não sabíamos nem o que era barulho,

nem o que era veneno.

A rua não era nenhuma

e cinza só o céu nos dias nublados.

 

A luz era do fogo e de Nhamandú,

das flores brancas e amarelas,

da lua que reflete na água,

dos olhos das corujas.

 

União sempre foi uma coisa só

e ouvir a dança das árvores

no silêncio dos ares

era sagrado como o caminho das formigas.

 

Água suja não tinha

e todos os pássaros cantavam o vento limpo.

Vento sujo não havia.

 

Assim como éramos um só,

Vivendo em mundos distantes:

Hoje paraíso,

Antes vida.

 

***

 

Terra sem males

 

Na terra sem males tem uma faixa de grama rosa e a lua é mais próxima do céu.

O tempo é outro. Ele explica e mostra com respeito o caminho até lá longe.

As nuvens são fumaças dos ancestrais,

que iluminam e sopram vento de vida para os que ali vivem.

Os pássaros cantam quando voam.

O som do silêncio também é assim – eterno.

 

Na terra sem males vive quem de lá nunca saiu,

talvez seja por isso que as raízes alcançam a montanha que vive debaixo da terra.

 

Os ventos apontam à eternidade porque são eternos também.

O raio de luz ilumina o chão,

Que ilumina a lama,

Que canta uma canção.

 

***

 

Vivemos!

Cortaram-me,

Mas viva estou.

Sou viva,

Estou viva.

Sou e vivo

O sopro de vida

Que Nhanderu me deu.

Cortada, sangrando, gritando

Mas viva.

Viva, viva

Viva,

Viva

E forte.

Porque sou forte também.

No meu corpo,

Sempre despido,

Minha vida bate nas costas.

Me dói tirar a terra dos pés.

A mata sufocada

Embaixo do concreto

É viva.

Assim como sou.

Porque a raiz da árvore que tentaram matar,

Mas nunca vão,

Mostra minha direção para terra.

Sou viva e estou viva

Como nunca,

Porque nunca me matarão também.

Podem me arrancar

As folhas, penas, pele

Mas viva estou e viva sou,

Debaixo do concreto,

Abaixo de Nhamandu,

Entre o yvytu.

 

Viva.

 

***

 

Carta à um amor ancestral

 

Nosso caminho para cura é lindo.

Nele está as mais floridas cerejeiras, mais fartas jabuticabas e amoreiras e o mais cheiroso capim-santo.

A terra é o chão e o chão é a terra, assim como nossos pés.

Nossas lágrimas de dor não são nada mais que a libertação,

que descem até o lago, aprofundam nossos espíritos e

estendem nossos cantos e rezas.

Nosso caminho para cura é lindo,

porque as árvores ficam mais firmes quando estamos de mãos dadas

e a tempestade purifica nossos corpos até com os ventos mais frios,

mantendo viva a quentura do nosso reencontro.

A risada das crianças nos revitaliza:

nela mora a esperança do nosso povo.

É por isso que nosso caminho para cura é lindo, meu bem:

Porque o horizonte, mesmo distante, está mais próximo do que nunca,

e o céu, cada vez mais perto do chão que habita nossos pés.

 

***

 

Amor indígena

Se for para amar, que seja assim:

amor que cresce a cada estação

e vive no tempo que nem existe mais,

mas que existe mais do que nunca.

Amor que passa leve pelo vento

e acompanha o rio de pedras silenciosas.

Amor que existe de olhos fechados,

Floresce de dentro para fora

E se esquenta com o calor da luz.

Cresce a cada fase da lua

E energiza o toque sútil –

o mesmo toque das flores de ipê rosa

quando beijam o vento de primavera

ou das ondas baixas

quando beijam a areia de uma ilha nunca habitada por homens.

Se for para amar, que seja assim:

Recomeços, sem um fim –

Até o mundo nascer de novo,

Com a pureza que nele sempre residiu.

 

***

 

Eu estranho o barulho da cidade.

Me disseram que de onde vim ouvimos de longe o som do mar,

o vento abraça

os pássaros cantam

as abelhas produzem o mais doce mel,

os coqueiros dançam

e a lua ilumina os horizontes e desenha-se nas águas.

 

Eu estranho o barulho da cidade.

Me disse que da aldeia eu vi e lá não há lugar para o caos:

apenas tempo para observar as constelações

e agradecer o presente que a natureza é.

 

Eu estranho o barulho da cidade

porque da mata sou

e escolhi amar em silêncio

o barulho que sempre morou em mim.

 

***

 

A noite ao observar, conseguia pensar em tudo no mundo,

Menos nas minhas futuras preocupações minúsculas.

Pensava como o vento abana cada centímetro nosso,

Refresca as plantas e animais;

Como o sol aquece os mais frios corações e mais secas folhas;

Como a natureza sempre manda sinais sonoros e respira alto;

Como o mar possui os mais profundos segredos;

Como o amor energiza;

Como a lua ilumina;

Como os ursos sonham intensamente ao hibernarem;

Como as nuvens desenham-se na imensidão;

Como a terra nutre e a raiz sustensa;

Como as constelações se completam;

Como os nossos rostos se encaixam;

Como minha alma tocou na tua.

 

Quando?

Por quê?

Pra quê?

 

O que é não ouviu nossa mãe sem ao menos suspirar entre os ventos?

O que é botar o mundo em chamas e não se sentir culpado?

O que é se afastar do amor e evitar qualquer forma

De arte,

De terra,

De ser?

 

***

 

Árvores não se calam

 

As árvores nunca se calaram.

Sinto o barulho do cheiro quando a chuva vem

e sinto o movimento da dança quando o vento passa.

Quando eu encosto meu ouvido

no casco seco e arquitetado

no corte violento

sinto o terror que a cidade traz,

sinto o medo que ela traz todos os dias.

Quando toco a terra,

sinto proteção.

Cadê o que me protege a todo canto?

Cadê o que protege todos nós – aqui?

 

O medo não me deixa subir numa árvore de pitanga

Porque esse medo foi a cidade que trouxe.

Esse medo que deixou as arvores caladas

E as crianças sozinhas.

 

Para mim, nós não ouvimos só pelos ouvidos:

quando a alma toca,

o canto que toca a gente

volta a cantar.

 

***

 

Soltar ventos ruins ao pular perto do céu é deixar ir embora e se curar por dentro,

para depois descansar ao lado do nosso amor.

Eu também sinto falta das noites calmas,

do céu limpo e da iluminação da lua sobre os nossos corpos finitos.

Almas que se reencontram não se soltam nas tempestades, nem nas guerras mundanas, nem nos maiores medos.

Almas que se reencontram não se soltam.

Talvez seja esse o grande segredo:

Caminhar em silencio para ouvir o sol e o mar, lá longe.

É para ouvir o coração que conversa com Nhanderu.

É tão bom estar contigo no caminho em silêncio e na terra que sempre foi nossa:

mãe que cuida e nunca abandona.

 

***

 

A CIDADE MATA E SUFOCA PARA SE MANTER VIVA.

 

***

 

Ipê é agora nome de rua

Pirituba nome de bairro

Pará de estado

Brasil nome de um país.

 

As palavras nativas nomeiam vidas destruídas.

 

Palavras são espírito e nosso espírito ficou

e fica.

 

Dizimaram nosso cantos e línguas

e o silencio de todo sopro de vida.

 

Tudo virou poeira da cidade

e o olho arde.

 

Habitar terra de ninguém nunca doeu tanto.

 

O sol queima sonhos na beira da avenida

e tudo que se foi vive na vontade de renascer:

 

semente plantada em sonos e fumaças.

***

Na mata será eternizado o cuidado de seus filhos e sua presença nos espíritos ancestrais, que estarão mais vivos do que antes.

O tempo morrerá nos lençóis da terra

e se transformará

em luas, estrelas, ventos e sol [de novo].

 

Isabela Para Poty