Povo Wapichana – Roraima
A minha trajetória e pesquisa de retorno à origem indígena guiam o processo de produção nas artes visuais. Cresci num ambiente urbano, em Curitiba-Paraná, com as histórias da minha mãe: uma Wapichana, da terra indígena Canauanim, do município de Cantá – Boa Vista-Roraima. Lucilene saiu da aldeia aos 10 anos de idade, em 1968, e suas histórias, sementes, que a acompanham, em conjunto com uma visita que realizamos em 2001, onde conheci minha avó e familiares indígenas, traçaram o meu destino como artista. Encontrei no desenho, no texto, no bordado, no som, na escuta e no caboco formas de dialogar com as atualidades indígenas e minha origem.
Sustos Wapichana – Bananeira
“Minha mãe contou que quando era criança, lá no início dos anos 60, ela cresceu entre os igarapés, pé no chão e bananeiras.
Segunda ela, tinha muita banana mesmo. Ela conta que saiu da aldeia de Canauanim em 1968 e a vida se portou como um rio: escoou ela para Boa Vista, Manaus e foi a levando até ao Sul, em Curitiba. Morou em muitas casas, trabalhou como doméstica, fez da costura a ferramenta de sobrevivência, se dedicou aos estudos e foi adotada por uma família do sul. Demorou 33 anos para juntar forças, tempo e recursos para re-visitar sua mãe e familiares na aldeia. Na ocasião, levou eu e meu irmão para apresentar os lugares que cresceu e nos introduzir aos nossos familiares. Lembro que ao identificar as bananeiras da aldeia, já coletadas e apresentadas no chão, ela logo se amontoou aos cachos, como se fosse sua casa, e pediu uma foto. Isso foi em 2001 e a cena me marcou. Passados outros 16 anos, uma nova visita. Agora em 2017, um susto.
– Onde foram parar as bananas? Eu fiquei indignada. Tive que comprar banana no mercado pra levar pra aldeia.
Conta-se que uma peste envenenou o solo e não tem muita banana crescendo por lá não. Esse foi o primeiro susto que minha mãe relatou da sua última visita a sua casa.”
Sustos Wapichana – Cachaça
“Tem muita gente doente nas aldeias. A cachaça, os problemas da cidade, estão fazendo parte de muitos cotidianos indígenas. A garrafa de 51 se tornou além de “uma boa ideia”, hoje representa ‘uma boa ideia colonial’.”
– Perdão,
Toma birita, lazarentão. A oferenda tá no teu corpo e teu santo mora no líquido dentro do vidro: avermelha os zóio e incha a cara.
– Essa cachaça não me pertence. Onde está cauim, caxiri, caracu?
– Resiste a bebida, o contexto, re-existe o canto, re-existência, retomada, repatriação.
51 é uma boa ideia colonial.
Sustos Wapichana – Fé
“Ouvi sobre a fé Wapichana, sobre a luta e demarcação de terras. Ouvi falar muito bem sobre Joênia Wapichana, a primeira advogada indígena, que trabalhou na homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Ouvi sobre a fé na terra, a fé no direita a terra. Sobre a forte influência missionária em Roraima. Sobre a força evangélica e católica. Sobre as cartilhas e sobre a tradução da bíblia para linguagem Wapichana feita por nosso tio Casimiro. Ouvi sobre a fé no trabalho, na cidade, na ‘civilização’, fé no agro, na roça e no gado. Ouvi sobre a fé no caboco, nos cabocos que nasceram das aldeias-roças, fé na agricultura e da mão de obra explorada.
Ouvi sobre a fé Wapichana: sobre a fala, sobre a palavra e o silêncio. Ouvi muito sobre o silêncio.
Ouvi o silêncio.”
Sustos Guarani-Mbya – Milho
“Em visita a aldeia Guarani Kuaray Guata Porã, de Guaraqueçaba – Paraná, me chamou atenção a questão dos alimentos. ‘Não posso plantar’ um colega indígena me disse. ‘A comida que chega aqui é de cesta básica, mas o lixo ninguém vem buscar. Antes plantava milho, batata, agora vem em lata, no saco’ outro colega explicou.
A noite, ouvi as palavras silenciosas do Xamõi na Opy’i. Dormi de olho aberto e a defumação no ouvido.
Saí da aldeia pensando nas latas de milho e na plantação. Pensei na resistência Guarani, do que ouvi sobre este povo: pensei na peregrinação em oposto à fixação. Pensei muito nas latas de milho enferrujando na terra.”
Pé no chão, pé de ouvido.
Enterra, semente desperta. Corpo é terra.